Perseguição judicial contra o semanário Sol, condenado a uma indemnização recorde de 1,5 milhões de euros
Repórteres sem Fronteiras denuncia vigorosamente a decisão tomada, a 1 de Julho de 2010, pelo Tribunal da Relação de Lisboa condenando o semanário Sol a pagar 1,5 milhões de euros a Rui Pedro Soares, antigo representante do Estado português no conselho de administração da empresa de telecomunicações Portugal Telecom (PT). A indemnização vem na sequência da publicação, a partir de 5 de Fevereiro de 2010, de uma série de artigos envolvendo Rui Pedro Soares num alegado plano do Primeiro Ministro José Sócrates e de alguns dos seus homens de confiança para a compra e controle do canal privado TVI pela PT. O Tribunal da Relação sustentou que o Sol havia desrespeitado repetidamente a providência cautelar interposta por Rui Pedro Soares a 11 de Fevereiro de 2010. O Sol deverá assim desembolsar 50.000 euros por cada uma das trinta violações verificadas à providência cautelar.
A decisão da Relação veio confirmar a sentença de 25 de Maio de 2010 que condenara em primeira instância o semanário por ter publicado extractos de escutas telefónicas que, de acordo com os juízes, estavam protegidas pelo segredo de justiça e violavam o segredo profissional invocado por Rui Pedro Soares. Aos já mencionados 1,5 milhões de euros, vêm juntar-se 110.000 euros a pagar pelo director do jornal, José António Saraiva, e 50.000 euros por cada uma das duas jornalistas responsáveis pela investigação, Felícia Cabrita e Ana Paula Azevedo. Contudo, o montante final poderá ser ainda maior, já que Rui Pedro Soares apresentou uma queixa contra o Sol reclamando 200.000 euros por danos patrimoniais, 200.000 euros por danos não patrimoniais e entre 2,5 e 3 milhões de euros por perdas de rendimentos em salários e bónus. Para o queixoso, esta acusação justifica-se pelo facto de ter sido obrigado a demitir-se do seu cargo de administrador da Portugal Telecom após a polémica provocada pelos artigos do Sol no início de Fevereiro deste ano. Este processo deverá ir a julgamento no próximo mês de Setembro.
Estamos escandalizados pela decisão do Tribunal da Relação, que confirma uma decisão já de si incompreensível em primeira instância. A investigação publicada pelo Sol é indiscutivelmente de interesse público e a publicação das escutas telefónicas é perfeitamente lícita, já que estas fornecem ao jornal a oportunidade de fundamentar os factos revelados. A compra de um meio de comunicação privado por uma empresa ligada ao Estado não é um assunto irrelevante e toda e qualquer investigação jornalística sobre o tema é mais do que legítima. Neste sentido, voltamos a relembrar que compete às autoridades judiciais garantir o segredo de justiça, e que o semanário Sol não tem neste campo nenhuma obrigação ou responsabilidade. O mesmo se aplica à condenação por “violação do segredo profissional”, que tem ainda menos sentido. O segredo profissional só vincula aqueles que exercem a actividade laboral em questão.
A publicação de escutas telefónicas obedece manifestamente ao interesse público e constitui uma das pedras basilares do jornalismo de investigação. Em Julho de 2010, a imprensa italiana mobilizou-se para se opor a um projecto de lei que punha em risco o direito legítimo da imprensa a publicar o conteúdo de escutas e uma parte dos documentos relacionados com as investigações judiciais. O governo italiano foi criticado a nível internacional por este projecto de lei, e teve que renunciar temporariamente a levá-lo a votação. Será necessário que o mesmo suceda em Portugal, para que finalmente os governos europeus reconheçam que a imprensa dispõe de um direito irrefutável a utilizar as investigações judiciais e as respectivas provas que caiam na sua posse?
O valor da indemnização, por outro lado, é surrealista e totalmente desproporcionado. As queixas interpostas contra o Sol e os seus jornalistas visam claramente intimidá-los e organizar a asfixia financeira do jornal. Não foi o próprio Rui Pedro Soares que, num singular exemplo de cinismo, afirmou estar disposto a tornar-se proprietário do Sol se a dívida que ele próprio ajudou a criar não fosse saldada?
As manobras do Governo para garantir o controle de certos meios de comunicação social são especialmente preocupantes. Como Estado-membro da União Europeia, Portugal tem um dever de exemplaridade no que toca ao respeito da independência da imprensa. Este tipo de ingerência e de falta de transparência que alguns parecem demonstrar contrasta abertamente com os critérios democráticos europeus. As ingerências do poder executivo nos média públicos ou privados têm-se multiplicado no seio da União Europeia. Para além dos golpes sofridos pelos alicerces dos nossos sistemas de gestão política, este fenómeno proporciona um exemplo deplorável que descredibiliza a Europa perante os numerosos governos autoritários e os predadores da liberdade de imprensa.
Paralelamente, a 20 de Julho de 2010, noutro processo relativo ao dossier “Face Oculta”, o Ministério Público acusou cinco jornalistas do Sol e a sua advogada de violação do segredo de justiça. O subdirector Vítor Raínho, os jornalistas Felícia Cabrita, Ana Paula Azevedo, Luís Rosa e Graça Rosendo, assim como a advogada Fátima Esteves, foram acusados de terem “causado forte perturbação na investigação” ao publicarem uma série de artigos sobre o dossier que incluíam os extractos das escutas telefónicas.
Rui Pedro Soares tem na figura do Ministério Público um curioso e muito oportuno aliado. Estas acusações não são mais do que uma clara perseguição judicial contra a redacção do Sol, à espera de que o semanário ceda mais tarde ou mais cedo à pressão económica ou judicial. A publicação dos artigos sobre o dossier “Face Oculta” e as suas ramificações não perturbam em nada uma investigação que, aparentemente, precisa de todos os apoios possíveis para avançar nas suas actividades. Solicitamos ao Ministério Público que retire as suas acusações e que todas as queixas já interpostas contra os jornalistas sejam imediatamente anuladas.
O dossier publicado pelo Sol a partir de 5 de Fevereiro de 2010 baseava-se nas transcrições de escutas telefónicas de uma investigação judicial sobre supostas fraudes na atribuição de concursos públicos, baptizada como “Face Oculta”. Rui Pedro Soares e várias personalidades ligadas aos socialistas no poder foram constituídos arguidos neste processo. Os textos das transcrições identificam como um dos intervenientes o mesmo Rui Pedro Soares, representante do Estado português nomeado pelo Primeiro-Ministro no conselho de administração da PT, empresa em que o Estado detém uma golden share e goza de uma influência considerável. Tendo como base o conteúdo destas conversas e as fortes suspeitas expressadas pelo juiz de instrução e pelo procurador encarregados do processo “Face Oculta”, o semanário publicara uma investigação sobre as acções levadas a cabo por José Sócrates para calar as vozes críticas nos meios de comunicação social. De acordo com o Sol, um dos pilares dessa estratégia passava pela compra do canal privado TVI, propriedade do grupo espanhol Prisa, pela PT durante o Verão de 2009. A TVI era, a poucos meses das eleições legislativas de Setembro de 2009, um dos meios de comunicação que mais incomodava o governo socialista de José Sócrates.
Os extractos das gravações telefónicas revelavam que Rui Pedro Soares se tinha deslocado pessoalmente a Madrid, em finais do mês de Junho de 2009, para negociar os termos do acordo entre a Prisa e a PT em nome desta última. Este acordo, aprovado pelo Primeiro-ministro, fracassaria dias depois, na sequência de fugas de informação comprometedoras para o Governo. Nesse momento, José Sócrates declarou ao Parlamento que não tinha conhecimento das negociações e que se opunha à compra da TVI pela PT. No entanto, as transcrições das conversas publicadas pelo Sol provavam exactamente o contrário, e levaram à abertura de uma comissão de inquérito parlamentar para determinar se o Primeiro-ministro mentira ou não. Alegando motivos de ordem processual, a comissão recusou tomar em consideração as escutas do processo “Face Oculta” e finalizou os seus trabalhos em Junho de 2010, com uma conclusão entre o paradoxal e o surrealista: para os deputados, se é certo que o Primeiro-ministro “tinha conhecimento” das negociações entre a Portugal Telecom e a Prisa, “não ficou provado que tivesse mentido”.