Luta contra a desinformação no Brasil: um projeto de lei perigoso para a liberdade de expressão
Um projeto de lei destinado a combater a propagação de informações falsas poderá ser votado nesta quinta, 25 de junho de 2020, no Senado brasileiro. Ele contém uma série de medidas que ameaçam gravemente a liberdade de expressão e o direito à privacidade. A Repórteres sem Fronteiras (RSF) pede a retirada imediata desse projeto de lei e a realização de uma ampla consulta pública para propor um novo texto que respeite os padrões internacionais de liberdade de expressão.
O projeto da "Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet (projeto de lei 2.630/2020), debatido às pressas e em condições desfavoráveis devido à pandemia de coronavírus, propõe combater a "indústria das fake news" no país.
Após dois adiamentos consecutivos da votação em junho, resultantes da pressão de um grande número de organizações da sociedade civil, incluindo a RSF, e das várias divergências entre parlamentares, o texto será oficialmente submetido a votação no Senado nesta quinta-feira, 25 de junho de 2020. Ele inclui uma série de medidas extremamente preocupantes, como a instauração de um sistema de vigilância em massa dos internautas, e prevê sanções desproporcionais que ameaçam diretamente a liberdade de expressão e de opinião e o respeito à privacidade dos usuários na Internet.
Entre os elementos mais preocupantes do texto estão:
- A obrigação, para todos os usuários das redes sociais e dos aplicativos de mensagem, de apresentar documentos de identificação e de ter um número de telefone celular ativo. Isto, poderá restringir na prática o acesso de milhares de brasileiros a serviços básicos.
- A obrigação, para as plataformas de armazenamento de dados e os aplicativos de mensagem instantânea, de conservar os registros, por pelo menos quatro meses, de todas as mensagens compartilhadas e enviadas. Isto significa que qualquer pessoa (jornalista, pesquisador, parlamentar, cidadão, etc.) que compartilhe e/ou denuncie um conteúdo suspeito deverá provar, posteriormente, que não possui nenhuma relação com as organizações ou indivíduos que disseminem massiva e voluntariamente informações falsas.
O objetivo dessas duas obrigações é poder rastrear a origem das campanhas de desinformação, identificar e sancionar os autores. Esse rastreamento das informações compartilhadas por meio de aplicativos de mensagem privados pode colocar em grave perigo o direito ao sigilo das fontes, no caso dos jornalistas.
A instauração desse mecanismo de vigilância vai forçar as empresas a adotar dispositivos que restrinjam a proteção da vida privada dos usuários de seus serviços sem, contudo, impedir que as pessoas na origem de campanhas de desinformação contornem tais dispositivos.
- O endurecimento das penas contra indivíduos que propaguem informações falsas
Os critérios escolhidos para identificar as informações falsas são intencionalmente vagos e baseados em conceitos amplos demais, como a "preferência política", o atentado à "paz social" ou à "ordem econômica". Isso abre a porta a interpretações e, portanto, a sanções desproporcionais contra tomadas de posição e publicações legítimas.
- O bloqueio generalizado e nacional das redes sociais e dos serviços de mensagem que não respeitem essas novas obrigações.
No Brasil, serviços como o WhatsApp e o Youtube já foram suspensos no passado pelas autoridades judiciais. Uma solução inadequada e contraproducente que se aparenta a uma tentativa de censura e prejudica todos os usuários, privando-os de acesso à informação.
O bloqueio dos serviços de mensagem constitui também um entrave ao trabalho dos jornalistas, especialmente aqueles que contam com tecnologias de criptografia para proteger suas fontes.
"Um assunto tão complexo quanto a desinformação não pode ser debatido às pressas e precisa de uma ampla consulta de todos os segmentos da sociedade civil envolvidos. Os parlamentares brasileiros não podem ignorar os riscos que esse projeto de lei faz pesar sobre as liberdades online e sobre a democracia em geral", declarou Emmanuel Colombié, diretor do escritório da RSF para a América Latina. "A insistência com a qual o Senado tenta fazer com que a lei seja aprovada, num momento em que o Brasil é fortemente afetado pela pandemia de Covid-19 e que os ataques contra os jornalistas se intensificam no país, é muito preocupante. A RSF pede a retirada do texto em sua redação atual e a instalação de um verdadeiro debate sobre o assunto, com a intenção de obter uma nova proposta legislativa que respeite os padrões de liberdade de expressão e o direito à vida privada dos internautas."
Esse tipo de regulamentação pode ter consequências muito nefastas. A RSF registra cada vez mais casos de jornalistas ao redor do mundo processados em nome da luta contra a desinformação online, quando simplesmente exerciam sua profissão.
Além disso, punir a divulgação de "notícias falsas" corresponde a retirar dos jornalistas seu direito a errar. Algumas leis preveem penalidades muito pesadas, sem levar em conta a intencionalidade dos jornalistas, que, às vezes, somente se enganaram. De qualquer forma, existe uma desproporção entre a informação, ainda que seja falsa, e a sanção.
Para lutar contra a desinformação online, a RSF recomenda às autoridades brasileiras que promovam mecanismos de autorregulação que favoreçam o respeito às normas e à ética profissional, como faz a Journalism Trust Initiative. Lançada pela RSF e seus parceiros, essa referência para um jornalismo confiável fornece indicadores de confiabilidade e de independência da informação. Permite aos meios de comunicação se autoavaliar, estar em conformidade com ela e publicar voluntariamente seus resultados, além de permitir a transparência sobre a propriedade das publicações e as fontes de recursos nos processos de correção. Esse padrão poderia também ser usado pelas plataformas como "fator de integridade" de seus algoritmos. A indexação algorítmica se baseia em inúmeros fatores, mas, até o momento, não leva em conta a conformidade dos processos editoriais com certos princípios básicos.
O Brasil ocupa a 107a posição no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa 2020 da RSF.