Mídia brasileira independente preenche lacunas deixadas pelo poder público e garante acesso a informação confiável durante a crise da Covid-19
Coletivos e agências de comunicação que fazem parte do Programa de Apoio do Jornalismo (PAJor), promovido pela Repórteres sem Fronteiras (RSF), multiplicam esforços para cobrir a crise sanitária e demonstram, na prática, o papel do jornalismo na garantia do direito à saúde e à informação.
Com suas coberturas plurais, Amazônia Real, Rede Wayuri, Ação Comunitária Caranguejo Uçá, Marco Zero Conteúdo, Data_labe, Fala Roça, Alma Preta e Nós, mulheres da periferia estão reverberando vozes ignoradas durante a pandemia de Covid-19. Suas atuações nas periferias e nos desertos de informação brasileiros têm sido cruciais ao ressaltar para a grande mídia e para a sociedade como um todo a necessidade de enxergar a crise que atravessamos com um grau menor de miopia.
Miopia evidenciada neste depoimento de Maria Aparecida, 36 anos, à jornalista Semayat Oliveira, do Nós, Mulheres da Periferia: "Desde que eu me entendo por gente falta água aqui onde eu moro". Moradora de Mauá, na grande São Paulo, Maria falou ao veículo depois de postar um vídeo no Instagram ecoando a seguinte dúvida: “Como a gente se previne de uma doença dessa se não tem nem água pra beber, quem dirá pra lavar a mão?!”. Desde os primeiros registros de Covid-19 no país, dúvida essa que paira sobre 35 milhões de brasileiros que não recebem água encanada e tratada em suas casas, segundo levantamento feito por Guilherme Soares Dias e Simone Freire, da agência de notícias Alma Preta.
Prevenir-se do coronavírus no Brasil é um privilégio da minoria. O contexto atual é trágico: no mês de junho, foram frequentes os recordes de mais de 1.000 mortes por dia. A atuação do governo tem sido desastrosa. Enquanto o Ministério da Saúde segue sem ministro oficial desde 15 de maio, os pacotes públicos de auxílio emergencial no campo econômico são insuficientes. O dia-a-dia da maioria da população durante a pandemia é marcado pelo desemprego, ou incapacidade de garantir renda, pela falta de informações claras e confiáveis, e pela escassez de direitos tão básicos como acesso a água, conforme sublinha Débora Britto nessa reportagem do Marco Zero Conteúdo.
Apenas 3 dias depois do registro oficial, em 16 de março, da primeira morte por Covid-19 no Brasil, a realidade de desigualdade vivida pela Maria, e pelos milhares de moradores de áreas desassistidas pelo Estado, foi escancarada por uma carta pública assinada por coletivos de comunicação independentes atuantes nas periferias das grandes cidades brasileiras:
"O governo e várias organizações indicam o isolamento social como o principal meio de prevenção da doença. Isso não é permitido à nossa realidade! (...) Nós, comunicadores periféricos e periféricas de várias partes do país, estamos juntando esforços para colaborar com informações precisas e que realmente consigam alcançar os nossos. Precisamos saber informar nossas crianças, nossos jovens, nossos idosos, nossos pais, mães e familiares. De nós para os nossos!".
O surgimento da rede #coronanasperiferias
A publicação funcionou como lançamento de uma grande cobertura, feita por centenas de mãos, que jogou luz em questões até então ignoradas pela grande mídia. Sob a hashtag #coronanasperiferias, os coletivos passaram a agir nas lacunas deixadas pelas instâncias municipais, estaduais e pelo governo federal.
Ao constatarem que um dos primeiros sintomas da Covid-19 nas periferias seria a insegurança alimentar, grupos como a Ação Comunitária Caranguejo Uçá responderam à crise de forma imediata, com mutirões que doaram milhares de cestas básicas. A rede de coletivos providenciou ainda a entrega de kits de higiene e máscaras de proteção, e produziu mapas virtuais para ajudar os cidadãos a localizar ações de assistência social.
Isso sem perder o foco na missão primordial de informar. As equipes, em geral enxutas, vêm se desdobrando para sanar a falta de acesso a informações claras e confiáveis sobre e para suas comunidades. O Jornal Fala Roça, por exemplo, decidiu fazer uma contagem própria de casos de coronavírus na Rocinha, favela localizada no Rio de Janeiro e conhecida como a maior do Brasil. Num furo de reportagem, o jornalista Michel Silva revelou os planos do prefeito do Rio de Janeiro de implantar um tomógrafo comprado com dinheiro público no terreno de uma igreja evangélica.
Ao trazer à tona a visão das periferias, estes meios de comunicação estão colocando na pauta nacional uma série de outras crises que se somam à sanitária. Como, por exemplo, estudar em plataformas de educação à distância quando não se tem computador ou wifi em casa. Essa é a situação narrada pela estudante Mayara Nascimento nesta reportagem de Elena Wesley, do Data_labe. Em coro com outros coletivos periféricos, o Data_labe foi ativo também na discussão sobre a necessidade de adiar as provas do principal exame de acesso a universidades no país.
A cobertura do caos na região Amazônica
Ampliar a cobertura sobre o norte do país é a missão da agência Amazônia Real e tem sido um desafio ainda mais árduo em tempos de pandemia. O veículo vem denunciando reiteradamente a falta de leitos de UTI e de estruturas mínimas de atendimento na região Amazônica, que foi a primeira do país a ver sistemas de saúde locais colapsarem.
Reportagens da agência estão revelando os obstáculos que os povos indígenas enfrentam para se blindar contra o coronavírus e, assim, estão funcionando como canal de reivindicação de políticas públicas específicas. “Para mim, a Covid-19 não é diferente da varíola, do sarampo, da gripe e da caxumba, que mataram muitos dos meus irmãos. Não queremos outro genocídio”, disse Crisanto Rudzö Tseremey’wá, da etnia Xavante. As palavras registradas, pelo repórter Marcio Camilo, não costumam encontrar paralelo na cobertura da mídia tradicional, que raramente contempla as vozes indígenas.
Já a Rede Wayuri atende a outra demanda básica, também usualmente negligenciada aos indígenas: o relato das notícias e acontecimentos nas suas línguas nativas. A rede atua na região de São Gabriel da Cachoeira, cidade a 850 quilômetros de Manaus, capital do estado do Amazonas. A viagem de barco para chegar lá é feita pelo Rio Negro e pode durar até 4 dias.
Para informar as 750 comunidades da região sobre os riscos oferecidos pelo coronavírus e sobre formas de prevenir-se contra a Covid-19, os comunicadores da rede estão produzindo boletins em áudio, que são distribuídos pelas ondas do rádio, pela internet e até mesmo em carros de som.
Sobre o Programa de Apoio ao Jornalismo
O PAJor reúne 8 organizações de mídia independente brasileiras: Amazônia Real e Rede Wayuri do Amazonas; Ação Comunitária Caranguejo Uçá e Marco Zero Conteúdo, de Pernambuco; Data_labe e Fala Roça, do Rio de Janeiro; Alma Preta e Nós, mulheres da periferia, de São Paulo.
Iniciado em fevereiro de 2020, o programa terá 3 anos de duração e tem como principal objetivo contribuir para o fortalecimento desses veículos enquanto organizações. Seguindo uma lógica de colaboração, o PAJor apoiará cada grupo na elaboração de protocolos de segurança digital e física. Também serão realizadas oficinas individualizadas, com foco no desenvolvimento institucional e na sustentabilidade financeira. O debate sobre liberdade de expressão será transversal ao projeto, através da realização de rodas de conversas e conferências sobre o tema. O programa prevê ainda intercâmbios entre as mídias participantes e a produção de reportagens em parceria.
O PAJor faz parte da iniciativa internacional Defending Voices, desenvolvida em parceria com a Repórteres sem Fronteiras Alemanha (Reporter ohne Grenzen) e financiada pelo Ministério da Cooperação e Desenvolvimento alemão (Bundesministerium für wirtschaftliche Zusammenarbeit und Entwicklung - BMZ). Defending Voices também inclui um braço de atuação no México organizado pela ONG Propuesta Cívica, que implementará ações destinadas a reverter práticas e marcos regulatórios que minam a liberdade de imprensa no país, e buscará justiça e reparação de danos para jornalistas, e seus familiares, que tenham sido vítimas de violações dos direitos humanos.