O Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa em tempos de coronavírus
A edição 2020 do Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa revela uma correlação entre a repressão da liberdade de imprensa durante a epidemia de coronavírus e a posição dos países no Ranking.
A crise sanitária é uma oportunidade para que os países com as piores classificações acentuem sua repressão e seus ataques contra a imprensa, ou ainda para imporem medidas que seriam impossíveis em tempos normais.
ÁSIA - PACIFICO
COREIA DO NORTE (180a, -1)
A impossível tarefa de fazer jornalismo no país dos “zero casos” de coronavírus
Na última posição no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa da RSF, as autoridades norte-coreanas não quebraram seus maus hábitos durante a pandemia de coronavírus. Sob Kim Jong-un, no poder desde 2012, o regime totalitário continua a manter a população na ignorância e garante que o número de casos de pacientes com coronavírus foi "zero". Vale destacar que Pyongyang vem apelando à comunidade internacional ajuda para combater a epidemia.
A agência central de imprensa norte-coreana, KCNA, a única autorizada a fornecer informações oficiais aos outros veículos de comunicação, segue muda quanto ao tema. E embora as autoridades norte-coreanas tenham demonstrado maior flexibilidade em relação à imprensa estrangeira, permitindo que um número maior de repórteres cubra eventos oficiais, correspondentes não podem investigar sobre as medidas adotadas para enfrentar a pandemia. A circulação de informações sobre o coronavírus também é dificultada por medidas técnicas que permitem um controle quase absoluto das comunicações e documentos transmitidos na intranet nacional, mas também pelo medo, pois o simples fato de consultar uma mídia sediada no exterior pode ser considerado um crime grave.
CHINA (177a, =)
O governo chinês não aprendeu a lição e reforça a censura
A China permanece estagnada na parte mais baixa do Ranking e demonstra não ter aprendido nada durante a epidemia de coronavírus, cuja disseminação foi ampliada pela censura. Pior, Pequim aproveitou a crise para aumentar ainda mais o seu controle sobre os meios de comunicação, proibindo a publicação de qualquer informação que questione sua gestão.
Isso ficou ainda mais fácil, uma vez que os meios de comunicação públicos e privados do país estão sob o controle rígido do Partido Comunista. Graças às novas tecnologias de vigilância, o presidente Xi Jinping conseguiu impor um modelo de sociedade baseado no controle da informação. Das centenas de jornalistas e blogueiros atualmente presos, pelo menos três jornalistas e três comentaristas políticos foram detidos em conexão com a epidemia. O regime também estreitou o controle sobre as redes sociais, censurando um grande número de palavras-chave relacionadas ao coronavírus. A repressão contra correspondentes estrangeiros também piorou, com a expulsão de dezesseis deles desde o início do ano.
FILIPINAS (136a, -2)
Uma lei para combater o coronavírus e processar os jornalistas
A crise do coronavírus cristaliza os aspectos mais graves da deriva autoritária iniciada pelo presidente filipino Rodrigo Duterte, que ameaça com frequência matar os jornalistas “filhos da puta” que não seguem sua linha. Ao menos dois jornalistas correm o risco de pegar dois meses de prisão por supostamente disseminar "informações falsas" relacionadas à crise do Covid-19. Essa acusação se baseia na adoção de uma lei recentemente aprovada pelo Congresso. A medida dá poderes especiais ao governo para processar qualquer repórter ou meio de comunicação que publique informações que desagradem o governo de Duterte.
Os meios de comunicação, como o site alternativo Bulatlat, têm seu credenciamento arbitrariamente negado em áreas de quarentena, reservadas aos veículos próximos ao governo. Outro limite foi ultrapassado quando um jornalista foi forçado, no início de abril, a se desculpar publicamente por criticar a inação do governo diante da crise do Covid-19. Uma prerrogativa normalmente associada a regimes totalitários.
MAGHREB - ORIENTE MÉDIO
IRÃ (173a, -3)
A crise sanitária escancara os piores hábitos do governo iraniano em termos de desinformação
A desinformação e falta de transparência são métodos tradicionalmente usados pela República Islâmica do Irã em crises e desastres. No caso da pandemia da COVID-19 não é diferente.
Em fevereiro, as autoridades começaram negando a extensão da propagação do vírus após a publicação de reportagens que relataram duas mortes relacionadas ao Covid-19 na cidade santa de Qom. Dois meses depois, o governo admitiu que o epicentro inicial da contaminação era a escola corânica da cidade, que recebe estudantes chineses. Uma vez admitida a verdade da epidemia, o regime fez de tudo para limitar o livre fluxo de informações sobre a crise sanitária. A divulgação de informações não oficiais sobre a crise levou muitos jornalistas a serem intimados e interrogados, até mesmo acusados, por "propagar boatos". Tweets sobre a situação de saúde nas prisões resultaram na prisão de um deles.
Em vez de informar sobre a realidade da epidemia, o regime iraniano cultiva a falta de transparência e usa a crise da saúde para alimentar sua propaganda antiamericana e denunciar as sanções impostas pelos Estados Unidos. O desejo de mostrar ao mundo que o Irã está lidando com a crise da saúde melhor do que o Ocidente e a desinformação de Estado pode colocar em risco a vida de milhões de iranianos.
EGITO (166a, -3)
A luta contra as “notícias falsas” e as informações sobre a pandemia
Há vários anos, o Egito conta com dois instrumentos para controlar a imprensa e amordaçar os jornalistas: o Conselho Supremo de Regulação da Mídia (SCMR) e o Serviço de Informação do Estado (SIS). O SCMR já permitiu o bloqueio de mais de 500 sites desde 2017 por "divulgação de notícias falsas". No contexto da pandemia, ao menos uma dúzia de novos sites foram censurados. Apesar da falta de transparência em torno desses bloqueios, verifica-se que o conteúdo incriminado frequentemente questiona a capacidade do governo de lidar com a escalada da pandemia.
A divulgação de informações científicas mostrando que o número oficial de pacientes com Covid-19 havia sido subestimado fez com que a correspondente do Guardian Ruth Michaelson fosse expulsa por decisão do SIS. Além disso, independentemente da crise sanitária, as autoridades continuam a censurar a mídia independente: o site de notícias Daaarb foi bloqueado apenas um mês após seu lançamento, sem relação com o Covid-19 ...
IRAQUE (162a, -6)
Depois das manifestações, a epidemia de coronavírus na mira das autoridades
A dramática situação dos jornalistas que se estabeleceu no Iraque desde as manifestações que explodiram no final de 2019 precipitou a entrada do país no espectro inferior do Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa. Um total de cinco jornalistas foram mortos em apenas quatro meses. As inúmeras milícias no país ameaçam continuamente os jornalistas de morte para impedi-los de cobrir os protestos, ecoando as demandas, mas também mostrando a repressão das forças de segurança que usam munição real.
O próprio Estado iraquiano ataca sistematicamente os jornalistas: doze veículos de imprensa foram fechados por causa de sua cobertura de manifestações consideradas desfavoráveis às autoridades. Desde o início da crise sanitária, as informações relacionadas à pandemia de Covid-19 passaram a estar na mira das autoridades. A Comissão de Mídia e Comunicações (CMC) decidiu suspender a licença de operação da agência de notícias Reuters devido a publicação de um artigo no qual médicos revelaram, sob condição de anonimato, que as autoridades haviam ordenado que não falassem à imprensa sobre o tema da crise sanitária. A região autônoma do Curdistão não é exceção: o Ministro da Saúde pediu o fechamento do canal NRT após uma reportagem explicando que as autoridades superestimaram o número de pacientes para dissuadir as pessoas de se manifestarem.
ÁFRICA
COMORES (75a, -19)
Crise do coronavírus revela uma preocupante deterioração da liberdade de imprensa no arquipélago
Agressões, prisões, intimidação, censura ... uma onda de ataques à liberdade de imprensa, sem precedentes nos últimos anos, atingiu jornalistas das Comores durante o referendo constitucional de 2018 e a eleição presidencial de 2019. O país, que era um bom aluno do continente africano, perdeu 26 posições no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa em dois anos, sendo 19 apenas no ano passado, a segunda maior queda na edição de 2020.
A crise do coronavírus funcionará como um teste para avaliar se essa série negra era apenas um parêntese ligado a um contexto sócio-político turbulento. Os primeiros sinais enviados pelas autoridades são preocupantes e mostram que as tentativas de colocar a imprensa na linha continuam. Procurando entender por que as Comores continuam sendo um dos únicos países africanos que não declararam nenhum caso positivo de Coronavírus, uma jornalista do jornal La Gazette des Comores revelou em uma investigação que as amostras colhidas nos primeiros casos suspeitos não haviam sido enviadas para análise. Ela foi ameaçada de processo pelo governo e as autoridades de saúde procuraram identificar sua fonte de informação.
De maneira mais geral, a crise destaca uma tentativa de monopolizar as informações, privando os jornalistas do direito de conduzir investigações independentes e de se desviar do discurso oficial. Vários responsáveis de meios de comunicação e editores de publicação foram integrados ao "comitê nacional de coordenação" sobre o coronavírus liderado pelo porta-voz do governo. Resultados: embora a comunicação oficial, muitas vezes, chegue às manchetes e seja imposta às rádios comunitárias, os artigos e reportagens que criticam a gestão dessa crise são frequentemente diluídos ou mesmo censurados.
AMÉRICAS
BRASIL (107a, -2)
Diante da pandemia, governo redobra ataques à imprensa
A chegada ao poder do presidente Jair Bolsonaro tensionou a relação do governo federal com a imprensa e contribuiu para o país caísse duas posições no Ranking 2020. Uma queda que deve continuar, na medida em que o chefe do executivo segue incentivando ataques à jornalistas e meios de comunicação. O presidente promove sistematicamente um clima de ódio e de desconfiança em relação à imprensa. Diante da pandemia, o governo federal redobrou os ataques, questionando quase que diariamente a cobertura da crise sanitária.
"O povo saberá brevemente que foi enganado pela mídia", afirmou o presidente Bolsonaro em entrevista à TV Record, no dia 22 de março. Dois dias depois, após qualificar o Covid-19 de "gripezinha", ele acusou grande parte dos meios de comunicação de procurar espalhar a histeria no país. Em 28 de março, seu próprio Ministro da Saúde, Enrique Mandetta, seguiu seu exemplo, qualificando, durante uma entrevista, o trabalho de imprensa como "sórdido" e "tóxico" e convidando os brasileiros a ''desligar a televisão um pouco".
Longe de se contradizer e ignorando as instruções de confinamento de seu próprio governo e as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Presidente Bolsonaro teve publicações censurados pelo Twitter e o Facebook, por violar as regras das plataformas ao espalhar desinformação sobre a pandemia no país.
EUROPA -ÁSIA CENTRAL
HUNGRIA (89a, -2)
Um controle total e ilimitado sobre a mídia, graças à "lei do coronavírus"
O primeiro-ministro Viktor Orbán, que fez seu país perder 16 posições no Ranking desde 2018, aproveitou a pandemia para fortalecer seu arsenal contra a liberdade de imprensa. A lei de emergência conhecida como "do coronavírus" permite que esse estado membro da União Europeia puna a disseminação de informações falsas com cinco anos de prisão. O poder executivo pode, num primeiro momento, decidir arbitrariamente se uma informação é verdadeira ou falsa. Assim, a lei permite ao governo exercer um controle direto sobre as redações que não informem da maneira desejada.
Essa lei que permite ao poder legislar por decreto por tempo indeterminado ameaça destruir as últimas fontes de informações independentes, principalmente porque a situação já era bastante crítica antes mesmo de sua adoção: o acesso à informação já era particularmente difícil para os jornalistas freelancers, privados de participar de determinados eventos, até mesmo proibidos de se dirigir a membros do parlamento. As perspectivas são ainda mais sombrias, pois os plenos poderes concedidos ao Primeiro Ministro são associados a uma campanha de ódio. Os meios de comunicação próximos ao governo pediram a "prisão" dos jornalistas críticos, chamados de "colaboradores do coronavírus" e de "pobres idiotas".
BIELORRÚSSIA (153a)
Um repressão exacerbada pela epidemia de Covid-19
Na Bielorrússia, os jornalistas de veículos de comunicação independentes e os blogueiros têm sido há tempos alvos privilegiados do governo. A crise sanitária exacerbou sua repressão, como é o caso de Sergeï Satsouk. Famoso por suas investigações sobre sistema de saúde do país, esse jornalista investigativo pode pegar até dez anos de prisão por publicar em sua mídia online, Ejednevnik, um editorial questionando as estatísticas oficiais sobre a epidemia de coronavírus. O jornalista também criticou a ordem do presidente Lukashenko de "cuidar" dos meios de comunicação que cobrem a epidemia, acusados de "semear o pânico".
Os jornalistas bielorrussos também são confrontados a uma crescente falta de transparência das instituições, desde o início da epidemia. O Ministério da Saúde, que agora reluta em responder a perguntas de jornalistas, não fornece as estimativas regulares dos casos de Covid-19. Esse silêncio promove a disseminação de rumores. Especialmente porque o próprio presidente contribui para a desinformação: "O trator vai curar a todos", afirmou ele no dia 16 de março, em referência ao trabalho rural supostamente saudável no campo, negando o perigo do coronavírus. No mesmo discurso, aconselha beber vodca ou ir à sauna para "matar o vírus".