Uma barragem se rompe na Europa?
Em poucos meses, os assassinatos de três jornalistas, em Malta, na Eslováquia e na Bulgária, tornaram a opinião pública internacional consciente de que a Europa deixou de ser um santuário para profissionais de imprensa, especialmente quando se interessam por casos de corrupção, evasão fiscal ou peculato com ramificações europeias, muitas vezes ligados à máfias.
Paolo Borrometi, jornalista siciliano especializado em redes criminosas, deve sua salvação à constante proteção da polícia italiana, que frustrou em maio uma tentativa de assassinato pela máfia: "Uma pequena morte serve para ensinar a todos os outros uma boa lição", disse um dos mafiosos durante a sua detenção. Assimcomo Roberto Saviano ou Paolo Borrometi, vinte jornalistas vivem sob escolta dia e noite na Itália (43o, +3). Nesse contexto, é ainda mais preocupante que o ministro do Interior, Matteo Salvini, queira questionar a proteção policial do escritor Roberto Saviano porque ele se atreveu a criticar o líder da Liga.
Em um clima de deterioração da segurança, a necessidade de proteção policial para jornalistas está sendo sentida até mesmo nos países mais bem classificados no Ranking. Nos Países Baixos (4o, -1), dois jornalistas especializados em organizações criminosas gozam de proteção policial em tempo integral, enquanto na Suécia (3º, -1) há um aumento de assédio na internet contra jornalistas que investigam o crime organizado ou assuntos religiosos.
Dupla pena: as ameaças das redes somadas às ameaças dos estados corruptos
Em Montenegro (104o, -1), um país candidato à adesão à União Europeia, a questão da proteção dos jornalistas não parece ser uma prioridade apesar dos graves ataques contra a imprensa nos últimos anos. As autoridades demoraram vários meses para prender os suspeitosde um ataque contra o jornalista investigativo Olivera Lakic- especialista em crime e corrupção - baleado na frente de sua casa em maio. Por outro lado, Jovo Martinovic, especialista em crime organizado nos Bálcãs, foi condenado a 18 meses de prisão em janeiro por investigar o contrabando de armas na região, apesar das claras evidências de que suas ligações com os círculos criminais estava unicamente ligada à sua atividade profissional.
Esses jornalistas incomodam porque estão investigando o tráfico internacional de influência, entre líderes políticos e redes mafiosas, ou sobre o desaparecimento de fundos europeus, como na Bulgária(111oe ainda na lanterna) - um país marcado por uma corrupção endêmica e pela ineficiência do seu sistema judicial. Jornalistas são pegos no fogo cruzado entre o crime organizado e o poder que não os defende mas os ataca: em setembro de 2018, a polícia deteve dois jornalistas investigativos independentes enquanto investigavam desvios de fundos europeus.
Uma gama de ameaças num contexto de corrupção
De um extremo ao outro do continente, os jornalistas que revelam negócios espúrios têm motivos de sobra para se preocupar. Na Romênia (47o, -3), à frente da presidência rotativa da União Europeia, jornalistas do site investigativo RISE project, que vinham investigando há meses casos de fraude nas subvenções europeias, sofreram pressão das autoridades. Eles invocaram o Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (GDPR) para obrigá-los a revelar suas fontes.
Em muitos casos, as estratégias de dissuasão envolve ataques mais violentos contra jornalistas, como no caso da Sérvia (90o, 14). Em dezembro, Milan Jovanovic teve que fugir de sua casa em chamas para escapar de um atentado. O mandante do ataque, um prefeito e membro do partido do presidente Aleksandar Vucic, foi preso, e o jornalista colocado sob escolta permanente.
Apesar de um clima pesado e perturbador, onde o assassinato de Daphne Caruana Galizia continua a ressoar como um sinal doloroso, um punhado de jornalistas quer continuar o trabalho da blogueira e revelar a corrupção e a lavagem de dinheiro desenfreadas em Malta, que continua seu declínio no Ranking (77o, -12). Mas além do medo de sofrer com represálias contra a sua integridade física, os jornalistas se tornaram alvos frequentes de pressão judicial.
A Polônia não é exceção e recua no Ranking pelo quarto ano seguido (59o, -1). Depois de Tomasz Piatek, processado pela promotoria militar e acusado de terrorismo por revelar ligações do ministro da Defesa polonês com a máfia russa, os jornalistas do diário Gazeta Wyborczaestão na mira das autoridades e ameaçados de prisão por questionar o líder do partido no poder, Jaroslaw Kaczyński.
A retórica anti-mídia
Outro fenômeno preocupante tomou conta da Europa em 2018: ataques verbais contra a profissão e uma retórica anti-mídia de maneira geral estão cada vez mais presentes em muitas democracias. Os jornalistas são declarados indesejados, ameaçados, insultados por personalidades que estão no mais alto nível do poder. Essa tendência está crescendo, particularmente na França (32o, +1), onde o líder do partido France Insoumise, Jean-Luc Mélenchon, declarou que o ódio aos jornalistas era "saudável e justo".
Na Hungria (87o, -14 lugares), a persistente recusa dos responsáveis do partido de Viktor Orban em falar com jornalistas que não são afiliados à mídia de "amigos de Fidesz" é uma constante. Viktor Orban se recusou há alguns meses a responder as perguntas feitas pelo canal de notícias HírTV, argumentando que o veículo era um concentrado de "informações falsas". Alguns jornalistas nem sequer têm o direito de falar com membros do governo, ou fazer perguntas em coletivas de imprensa.
Essa crítica à mídia está se tornando uma arma política que enfraquece o jornalismo ao questioná-lo sistematicamente. Os chefes de estado não hesitam em usar os meios de comunicação públicos, transformados em instrumento de propaganda, para fortalecer essa retórica anti-mídia. O uso desses canais para pressionar os jornalistas não é novo, mas a prática se intensificou. Na Polônia, onde o governo conservador do PiS transformou o meio audiovisual público em audiovisual do Estado, questiona-se a responsabilidade da televisão estatal TVP no assassinato de Pawel Adamowicz, prefeito de Gdansk. Seu nome teria sido pronunciado 1800 vezes no veículo de comunicação durante o ano, sempre com o objetivo de atacá-lo. O diretor do canal também prometeu processar todos os jornalistas com um vínculo entre o discurso de ódio da TVP e o assassinato.
Das palavras aos atos: um limite foi ultrapassado
Esses ataques verbais e ameaças contra os meios de comunicação em toda a Europa incitam a uma violência que se nutre de um ódio ao jornalismo, um ódio ao pluralismo, e que é uma forma de chantagem antidemocrática. O ódio à mídia, uma das principais características da raiva dos "coletes amarelos" na França, é a ilustração mais preocupante disso, e foi brutalmente manifestada com agressões e intimidações sem precedentes. Uma repórter da La Dépêche du Midi foi ameaçada de estupro e insultada por uma horda de manifestantes revoltados em Toulouse em janeiro. Ao todo, várias dezenas de incidentes graves foram registrados desde o início do movimento. Eles se juntam a dezenas de casos de violência policial e ao uso excessivo da força, com tiros de bala de borracha que visavam principalmente os foto jornalistas.
Além das ameaças e intimidações, cada vez mais jornalistas são assediados e exauridos financeiramente. Uma prática especialmente dissuasiva contra jornalistas está se espalhando pela Europa hoje. Seus oponentes usam os chamados processos "mordaça" - em inglês, os SLAPP(strategic lawsuit against public participation) - queixas por difamação que, muitas vezes, visam mais intimidar e silenciar jornalistas do que buscar reparação. Na França, muitos jornalistas foram processados por grandes grupos comerciais como Vinci ou Bolloré. O magnata bretão está por trás de muitos processos de difamação na França e no estrangeiro, contra artigos ou reportagens audiovisuais que lhe permitem contornar a lei de 1881 sobre a liberdade de imprensa.
Essa técnica, que também visa esgotar os recursos financeiros dos jornalistas, é também muito difundida em Malta. Depois de Daphne Caruana Galizia, que foi objeto de um verdadeiro assédio judicial até o seu assassinato, é a vez da plataforma de investigação The Shift News de estar na mira dos poderosos. Apesar de um bom desempenho neste Ranking, a Croácia (64o, +5) bate recordes nesta área: o sindicato dos jornalistas, HND, documentou mais de mil processos judiciais contra jornalistas ou órgãos de notícias, na maioria das vezes, apresentados por políticos ou figuras públicas. Ironicamente, nada menos do que trinta deles foram apresentados pela televisão pública HRT!
Europa Oriental e Ásia Central, um recuo generalizado e alguns lampejos de esperança
Apesar do forte contraste entre os países da região, a Europa Oriental e da Ásia Central segue como a penúltima no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa. Moscou e Ancara continuam a dar o mau exemplo, mas a ascensão de alguns Estados mostra que avanços são possíveis.
Embora o Ranking de 2019 seja mais volátil do que o usual na Europa Oriental e na Ásia Central, isso não se aplica à Rússia e à Turquia: esses pesos pesados no cenário internacional continuam sendo laboratórios da repressão. Na Turquia (157o), após a compra do maior grupo de imprensa por uma holding próxima ao poder, a corda continua a apertar em torno dos últimos meios de comunicação mais críticos. A prisão preventiva de jornalistas ocorre de forma sistemática e as condenações podem chegar à prisão perpétua. O representante da RSF, Erol Önderoğlu, é acusado de "propaganda terrorista" por defender um jornal curdo. Não contente em bloquear todos os anos milhares de artigos e de mandar prender internautas por um simples "curtida" numa rede social, o governo quer agora retomar o controle dos serviços de vídeo online.
Corrupção: investigações de alto risco
A Turquia é também o único país no mundo em que uma jornalista está sendo processada por suas investigações sobre os "Paradise Papers": Pelin Ünker foi condenada em primeira instância a 13 meses de prisão e ao pagamento de uma multa elevada. Um sinal entre outros da perseguição ao jornalismo investigativo, definido pelo governo como "destrutivo" ou "anti-patriótico". A corrupção, sobretudo, é um assunto tabu desde que um escândalo abalou o governo de Recep Tayyip Erdoğan em 2013.
O jornalismo investigativo é também detestado nos países da antiga União Soviética, onde a corrupção constitui há muito um problema de grandes proporções. A maioria dos jornalistas presos na Rússia ou no Azerbaijão cobria esse tema. Foi depois de acusar altos funcionários de irregularidades que o ex-jornalista Khairrullo Mirsayov foi preso no Tajiquistão e que duas redações foram alvo de uma busca das autoridades no Cazaquistão. Foi durante investigações semelhantes que jornalistas ucranianos se viram sob vigilância, ou obrigados a cooperar com as autoridades, em detrimento do sigilo das fontes.
Cortar o acesso à Internet não é mais uma linha vermelha
Na Rússia (149o), que perde uma posição no Ranking em relação ao ano anterior, segue exercendo uma pressão cada vez mais forte contra a mídia independente. A adoção de leis liberticidas, prisões e buscas arbitrárias, impunidade, violência policial... Vladimir Putin começa seu quarto mandato sob maus auspícios. Ao tentar bloquear o aplicativo de mensagens criptografadas Telegram, às custas de sérios danos colaterais, Moscou demonstrou sua determinação em avançar em direção ao seu objetivo de "Internet soberana". Enquanto espera superar os obstáculos técnicos para essa ambição, o Kremlin continua a ampliar o seu controle sobre a circulação da informação na internet, a principal fonte de informação para uma juventude que escapa cada vez mais da propaganda televisiva: censura dos motores de busca, bloqueio das ferramentas para contornar a censura, obrigação de as plataformas cooperarem com o FSB ...
Ainda que Moscou defina o conceito, a censura na Internet já é amplamente partilhada. Para regimes autoritários na região, o bloqueio de sites de notícias críticas é agora o mínimo. Em sintonia com uma deriva global, as autoridades tajiques, cazaques ou inguches não hesitam em cortar pontualmente o acesso à Internet móvel, às redes sociais ou aos serviços de mensagens instantâneas, para atrapalhar as manifestações e reduzir sua cobertura pelos meios de comunicação.
As transições políticas afetam a liberdade de imprensa
Em uma região onde tudo é congelado, evoluções fortes são raras o suficiente para serem percebidas, especialmente quando isso representa uma alta. No mapa da liberdade de imprensa, o Uzbequistão (160o, +5) deixa a zona do Ranking classificada como grave. O degelo iniciado após a morte do ditador Islam Karimov em 2016 se confirma: os últimos jornalistas presos foram libertados, e alguns meios de comunicação começaram a cobrir tópicos considerados delicados. Mas ainda há muito a ser feito para superar a censura e a autocensura que reinaram supremas por tanto tempo.
Outras altas significativas, as da Armênia (61o, +19) e do Quirguistão (83o, +15), que sobem consideravelmente por estarem situadas em uma zona do Ranking mais volátil. Amplamente conduzidas pela mídia e pelas redes sociais, a "revolução de veludo" na Armênia afrouxou o poder do governo sobre o sistema do audiovisual público. O ex-presidente do Quirguistão, Almazbek Atambayev, e seu sucessor abandonaram suas demandas por indenizações astronômicas contra jornalistas críticos, virando a página de uma sequência eleitoral que pesava sobre a mídia. Na ausência de reformas sustentáveis, os jornalistas permanecem, contudo, à mercê de retrocessos repentinos.
A aproximação de importantes eleições em 2019 acentuou ainda mais a polarização da Ucrânia (102o, -1) e da Moldova (91o, -10), degradando o clima de trabalho dos jornalistas, favorecendo manipulações e ilustrando o peso dos oligarcas sobre os principais meios de comunicação. Tensões que explicam em grande parte o declínio desses dois países no Ranking.
Último do mundo: o triste desempenho do Turcomenistão
Mais da metade dos países da região ainda pontuam em torno ou logo abaixo do 150º lugar no Ranking, e a situação continua a se deteriorar entre os menos bem classificados. O Turcomenistão (180o, -2) ocupa o último lugar no Ranking, atrás da Coreia do Norte e da Eritreia: esse triste desempenho é o resultado de vários anos de endurecimento contínuo, durante os quais as autoridades perseguiram implacavelmente os últimos correspondentes clandestinos de meios de comunicação no exílio.
O Tadjiquistão(161o, -12), por sua vez, está se aproximando perigosamente da parte mais baixa do Ranking. A maioria dos meios de comunicação independentes foi forçada ao fechamento ou ao exílio, os últimos estão lutando com o bloqueio de seu site na Internet e as pressões permanentes que incitam à autocensura. Em contraponto ao degelo uzbeque, esse recuo faz do Tadjiquistão o segundo país menos bem classificado da Ásia Central.
Do outro lado do mar Cáspio, o Azerbaijão (166o, -3) também continua a perseguir as últimas vozes críticas. A repressão está também endurecendo na Bielorrússia (153o): ao assédio financeiro de correspondentes de meios de comunicação no exílio, juntam-se agora os bloqueios de sites de notícias de referência,a intimidação de jornais independentes até então poupados, e o endurecimento da legislação. Apenas o número incomparável de detenções em 2017 e a deterioração da situação no restante do mundo explicam a ascensão paradoxal do país no Ranking.